Enxugando o passado

Panóplia Cultural
3 min readAug 20, 2024

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Por Fabiana Esteves

A música que toca quando eu me enxugo não é a mesma de anos atrás. Embalada de perguntar à minha mãe certos arremedos do dia, as palavras iam se intercalando aos movimentos leves da toalha no corpo dela. Foi assim que eu aprendi a me enxugar. Primeiro o rosto, depois os braços (um de cada vez, em toda a sua extensão), em seguida o dorso, os seios, as pernas (que no banho eu já tinha lido as entrelinhas da gilete nos poucos pelos eriçados), também uma de cada vez… E por fim as costas, quando se extinguia o assunto e ela arrematava o enleio com talco embaixo dos seios, o que nunca entendi, mas me agradava do cheiro e da textura macia daquela farinha branca que não se podia comer. A camisola fechava o ritual que antecedia as leituras e o sono. Muito do que aprendi nesta vida foi assim, observando o que os adultos faziam. Eu gostava de dividir os espaços com eles, de compartilhar as conversas e as tarefas. Não só aprendi a me enxugar, mas a fazer arroz, descascar batatas, arrumar as camas e a contemplar uma obra de arte. Aprendi a chorar, a não desistir, a ler a vida através de outras lentes… Hoje preciso ensinar minhas filhas a se enxugar, preciso chamar para que venham conversar… As crianças de hoje são por demais independentes, querem encontrar o próprio jeito de fazer as coisas, aprendem assistindo uma infinidade de tutoriais que rondam os canais no YouTube. Esses dias me emocionei quando ensinava a Ísis qual parte do corpo ela devia enxugar primeiro, igualzinho aprendi observando a minha mãe e avó. O afeto invadiu o banheiro como uma brisa leve e molhada, e ela sorriu. E a nostalgia, que devia ser um caminho para o passado, me conectou ao presente como num gole de Mineirinho, refrigerante que eu costumava tomar com meu pai na infância.

Nas fotos acima, Fabiana Esteves e suas filhas Ísis e Laís.

Autoria

Fabiana Esteves é Pedagoga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNiRIO) e Especialista em Administração Escolar. Trabalhou como professora alfabetizadora na Prefeitura do Rio de Janeiro e no Estado do Rio com Educação de Jovens e Adultos. Trabalhou como assessora pedagógica e formadora nos cursos FAP (Formação em alfabetização Plena) e ALFALETRAR, ambos promovidos pela Secretaria de Educação do mesmo município. Também foi Orientadora de Estudos do Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, programa de formação em parceria do município com o MEC. Em 2015 coordenou a Divisão de Leitura da SME de Duque de Caxias (RJ). Atualmente, é Orientadora Pedagógica da Prefeitura de Duque de Caxias, onde tem se dedicado à formação docente. Escritora e poeta, participou de concursos de poesia promovidos pelo SESC (1º lugar em 1995 e 3º lugar em 1999) e teve seus textos publicados em diversas antologias pela Editora Litteris. Escreve para os blogs “Mami em dose dupla” e “Proseteando”. Publicou os livros “In-verso”, “Pó de Saudade”, “Maiúscula”, “A Encantadora de Barcos”, “Coisas de Sentir, de Comer e de Vestir” e “Mãe Também Engole Água Salgada”. É mãe das gêmeas Laís e Ísis.

Blog: http://fabianaesteves.blogspot.com

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